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Contraponto Criativo

"O que sou eu principalmente?"

  • Foto do escritor: Aryane Rodrigues
    Aryane Rodrigues
  • 1 de nov. de 2024
  • 3 min de leitura

"O mundo em que vivemos é a projeção de todas essas perplexidades dos 'eus' que já não sabem o que são."


Estou tendo novamente a oportunidade de reler um dos livros que, desde as primeiras linhas, soube que me marcaria para sempre. Falo de Lições de Abismo, o único romance de Gustavo Corção, autor e obra que até 2019 me eram desconhecidos.

Na época, durante uma ida ao sebo com o objetivo de encontrar Vidas Secas, com um vale-presente em mãos, me deparei com a obra de Corção. O romance de Graciliano Ramos estava fora do orçamento, então fui olhar as prateleiras de literatura nacional – foi ali que encontrei o livro de Corção.


Confesso que a capa me chamou atenção pela ilustração, que hoje sei ser de Oswaldo Goeldi. Naquele momento, porém, associei-a a ilustrações dos livros de Dostoiévski, o que despertou minha curiosidade. Além do título e dos nomes desconhecidos, a capa trazia alguns comentários de Nelson Rodrigues, Gilberto Freyre e Oswaldo de Andrade, que foram suficientes para me convencer a levar o livro – ainda que eu não soubesse nada sobre a história.


Como comentei, estou agora em minha terceira leitura do romance, e nem é exatamente sobre ele que venho falar exatamente.


Agora, nesta leitura mais atenta e com pesquisas sobre o autor, me deparei com outros escritos de Corção – que, diga-se de passagem, são fenomenais. Alguns escritores possuem a capacidade de penetrar em nossa alma com suas palavras, e foi exatamente isso que aconteceu, ao ler um trecho enquanto fazia minhas pesquisas para preparar uma aula.


O trecho em questão dizia o seguinte:


"O que sou eu principalmente? O habitante do século XX [e ainda mais o do século XXI] não sabe responder a essa pergunta e, consequentemente, não sabe se deve andar ou parar, se deve sentar-se para estudar, se deve deitar-se e deixar a vida correr, se deve virar de cabeça para baixo como os palhaços, se deve cair de quatro como os imbecis, se deve erguer a cabeça ou dobrar o joelho. O mundo em que vivemos é a projeção de todas essas perplexidades dos 'eus' que já não sabem o que são."

(Permanência, junho de 1969)


Ao lê-lo, não pude evitar uma profunda reflexão sobre a crise de identidade que se torna cada vez mais evidente em nosso tempo – um tema que sempre me atrai e que, de muitas formas, também me toca pessoalmente.


Embora essa crise pareça ter sempre existido, ela se intensificou nas últimas décadas com o avanço tecnológico. Não quero ser hipócrita; esse progresso nos proporcionou muitos benefícios. No entanto, também trouxe uma avalanche de escolhas e a transformação de muitos valores, que afetaram nossa cultura e sociedade, e nos colocou em uma grande confusão.


Completo 31 anos este mês, e há dez anos a pressão dessa avalanche me parecia bem menos intensa. As inúmeras vozes que nos chamam a todo instante, os diversos ideais e novos padrões que surgem, nos lançam em um mar de incertezas sobre quem realmente somos. A cada dia, parece que nos afastamos um pouco mais do nosso rumo em relação à vida, à vocação e ao propósito.


Não compreendemos mais o sentido real de nossas ações, e as respostas nos escapam. Parece que estamos sendo condicionados a viver replicando modelos preestabelecidos de sucesso e toda essa confusão parece nos empurrar cada vez mais para um ponto extremo de paralisia e de desconhecimento de nós mesmos.

Ao ler esse breve parágrafo de Corção, me perguntei quantas vezes caí nessa armadilha de não saber se devo seguir em frente ou parar, se devo me dedicar aos estudos ou simplesmente deixar a vida fluir. Mais importante ainda, refleti sobre quando foi a última vez que me questionei, em busca de uma resposta genuína, sobre a pergunta: "o que sou eu principalmente?"


É uma pergunta para toda a vida, eu sei, mas o tempo avança depressa, a confusão cresce, e, se nos deixarmos levar, talvez nunca encontremos essa resposta. Por isso, minha pergunta para você é: quando foi a última vez que você se perguntou, com sinceridade, "O que sou eu principalmente?"


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